segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Cansada de mim


Foi domingo e não descansei.
Foi domingo e não dancei.
Foi domingo e não amei.
Louvei deus nenhum.
Mortal comum,
cruzei dois dedos
e fingi acreditar.
Passou a manhã,
passou a tarde,
anoiteceu.
Os segundos como grainhas
de romãs, difíceis de descascar.
De chinelos e pijama de flanela
jantei com o gato
e flores na mesa,
dálias amarelas
a envelhecer devagarinho.
E o dia esteve bonito,
apesar do frio,
é dezembro, que se lhe há-de fazer.

inédito, Dezembro|2015
Foto: Imogen Cunningham, Three Dancers, Mills College, 1929

Vala comum


Os corpos arrumados como arenques numa lata,
de viés, uma cabeça dois pés, uma cabeça dois pés.
Os corpos quase intactos
preservados não em azeite, nem em óleo de girassol,
mas por um Inverno frio e pouco chuvoso.
Até as roupas estavam em bom estado.
As lãs e as fazendas são para lavar à mão e a frio.
E estavam todos lá, pais, avós, filhos, tios, primos, sobrinhos
e dois vizinhos que eram como família.

inédito, Dezembro|2015
Foto: Rémi Noel

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

En el amanecer te desvaneces


En el amanecer te desvaneces.
Sólo queda tu sombra entre mis manos,
una presencia de aire, anhelo y sueño y risa
que disipa su incendio consumido.

Con desesperación busco tu cuerpo,
el fugaz testimonio, ese deleite
de toda tu fragancia derramada,
cautiva todavía por mi piel.

Relumbras por mis médulas como un latido unánime,
como una ciega música que habitara en mi oído,
con su calor, su vibración de fondo,
su presencia invisible en el silencio.

Cruzo de la pasión a la demencia
persiguiendo tu espectro, el espejismo
de una imagen que asciende por la escala nocturna,
llevándote desnuda entre sus brazos.

Virginia


a louca atirou uma a uma
ao rio as poucas coisas que trazia
atirou-se também por fim
como poderia ela
como poderia
como poderia ela ter-se esquecido de si

in vida: variações (cotovia, 2008)
foto Olivia Steele 

nada é tão líquido assim


nem todos os homens que
saem de minha casa saem de minha cama
nem todos aqueles que
saem da minha cama saem de dentro de mim
nem todos os que
saem de dentro de mim chegaram sequer a lá entrar
não, nada é tão líquido assim

in vida: variações (cotovia, 2008)
pintura: Eli Levin, Woman in Bed, 1986,

fumo denso


Tu fumas à janela, olho pra ti espelhado nela,
A noite é longa e dentro dela, a chuva pinta uma aguarela
Somos tu e eu, só tu e eu, tu e eu, só tu e eu...
E é quando me tocas que eu sei. Eu sei.
Porque é que eu ainda não te ultrapassei. E sei...
Que nada eu que eu vivi ou viverei
Pode ser maior que o nosso fogo e neste jogo todo és rei.
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro...
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro...
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro...
O lume... o cheiro...
E é quando me falas que eu sinto...
Que as palavras são amargas como o tinto
E esses lábios doces cor de vinho
Só me mentem ao dizer “Eu não te minto”!
E nesses olhos verdes absinto
Eu só consigo ver um labirtinto.
E é quando tu te calas que eu penso...
Porque é que não és feito de silêncio?
Dás-me um copo que eu dispenso
Estendo o corpo e adormeço
sono tenso, sonho intenso
entre nós só fumo denso
fumo denso...
é só fumo denso...
fumo denso...
Dás-me um copo que eu dispenso
Estendo o corpo e adormeço
sono tenso, sonho intenso
entre nós só fumo denso
só fumo denso...
fumo denso...
é só fumo denso...
...
Tu fumas à janela, olho pra ti espelhado nela,
A noite é longa e dentro dela, a chuva pinta uma aguarela
Somos tu e eu, só tu e eu, tu e eu, só tu e eu...
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro...
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro...
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro...
O lume... O cheiro...

suspender a noite e o coração


é porque existe o desejo, o olfacto, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
- os que nos vão sobrevive no tempo -
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhámos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no acto de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.

A colher de Samuel Beckett e outros textos, Campo das Letras, 2002.
foto (Audrey Hepburn & Mel Ferrer, França, 1956.)